segunda-feira, junho 21, 2010

A cantareira


A cantareira era uma peça de mobília fundamental nas humildes casas de aldeia do tempo dos nossos avós. Muito parecida com o que agora chamamos de estante para livros, era uma estrutura de madeira, formada por três ou quatro prateleiras, em que a mais baixa ficava geralmente à altura da cintura de uma pessoa e servia de poial para colocar os cântaros de barro (um ou dois) com água para beber. A boca dos cântaros era tapada com uma tijela, e sobre esta repousava um pucarinho, com o qual se retirava a água para bebermos. Esta vinha fresca da fonte; os cântaros eram transportados pelas nossas mães, à cabeça, com a ajuda da imprescindível molídia ou rodilha. Para a fonte iam vazios, deitados; de regresso vinham cheios e em pé, num milagre de equilíbrio que muito nos admirava como crianças. Lembramos aqui a famosa adivinha :– Que é, que é, que vai deitado e vem em pé?
Nas prateleiras cimeiras eram alinhadas as mais vistosas louças da família, que, na maior parte dos casos, consistiam em alguns pratos e tijejas, púcaros, travessas e pelanganas, de feira, pintados com motivos campestres e saborosas quadras populares, como esta: Os pratos da cantareira / Estão sempre tlim-tlim / Assim é o meu amor / Quando está ao pé de mim.
Toda a cantareira era como uma espécie de montra, bem cuidada e ornamentada, onde a dona de casa se revia: alvos panos de linho ou de renda a cobrir os cântaros; artísticas e coloridas tiras de papel recortado (às vezes de jornal) pendiam das prateleiras, enfeitando-as. Pela cantareira se avaliava também a solidez do lar e a função incomparável da mulher e da mãe na família daquele tempo: Vai beber à cantareira / A silva que nasce na escada / Sempre parece solteira / A mulher que é bem casada.

Imagem: gentileza do Núcleo Museológico da Liga de Amigos de Aranhas.

sexta-feira, junho 11, 2010

Hoje como ontem


Atravessamos, presentemente, uma grave crise económica, que pune essencialmente os estratos mais baixos da gente portuguesa, sacrificando, de forma injusta e brutal, os mais humildes e desfavorecidos.
Vozes se levantam a toda a hora, clamando contra a má distribuição da riqueza (que deveria ser de todos), que o mesmo é dizer contra a má repartição dos sacrifícios impostos pela citada crise (que deveriam caber, também, a todos).
Vivemos nós tempos modernos, onde se fala em democracia, em igualdade de oportunidades, de direitos e de deveres, bem como noutras maravilhas antes desconhecidas.
Nos nossos tempos de juventude, no nosso Salvador, vivia-se a agora chamada ditadura obscurantista dos meados do século passado, e a localidade era uma apagada aldeola raiana da Beira Baixa, apesar de rodeada de searas, de floresta, de vinhedos e olivais, entretanto quase erradicados.
Mas já havia as tais vozes que clamam no deserto, inacessíveis à surdez dos políticos. Repare-se no verso seguinte, do livrinho da imagem, escrito em 1949 pelo guarda-fiscal e poeta popular António Vaz Leitão (1898-1977), um monsantino que passou grande parte da sua vida em Salvador:

Eu gostaria de saber,
Tanto parasita a comer
Sem pensarem noutra lida,
Se quem trabalha honradamente
Tem obrigação permanente
De os governar à boa vida?...