sexta-feira, setembro 14, 2007

Cantigas ao desafio – O «Ti» Moreira


Um dos passatempos favoritos de alguns salvadorenses, nas festas e nas tardes de domingo, eram os cantares ao desafio. Acompanhados à viola, ao harmónio ou à concertina, os despiques prolongavam-se horas a fio, só terminando quando algum dos intervenientes se calava, isto é, ficava sem resposta perante o adversário.
Qualquer tipo de estrofe era possível, mas o mais frequente era a quadra popular (medida velha ou redondilha maior). É evidente que os competidores pouco saberiam da norma poética (normalmente nem sequer sabiam ler), mas conseguiam desenvolver uma discussão coerente durante certo tempo, sempre em verso.
As regras existiam, o que limitava o desafio aos mais capazes. Não era bastante ter boa voz e saber cantar: havia que possuir um grande repertório de quadras e tê-las na ponta da língua. Uma das regras principais era a de pegar no ponto (o novo cantor entrava a rimar com o último verso do adversário); outra, também muito apreciada, era a de aos quatro pontos quadrar – trata-se da chamada rima cruzada ou alternada: o primeiro verso rima com o terceiro, e o segundo com o quarto.

Cantador A:
Ó fonte da minha aldeia,
Ensina-me o teu cantar.
Os meus olhos, volta e meia,
Andam com água a chorar.

Cantador B:
Aos quatro pontos quadrar
Se conhece o cantador.
Quantos peixes há no mar,
Diga-me lá o senhor.

Cantador A:
Eu respondo-lhe com amor
E vou-lhe já dizer quantos.
Tome nota, por favor,
São metade e outros tantos.

Cantador B:
O senhor tem muitos encantos
Mas agora pergunto eu:
Quantos pretos e quantos brancos
Na cabeça tenho eu?

Cantador A:
Conte as estrelas do céu,
Porque esse conto é igual.
A gente ‘inda não bebeu
E assim contamos mal.

Cantador B:
Mas quem perdeu, afinal,
Que mande vir a rodada,
E puxe p’lo capital,
Que comigo não é nada.

Etc., etc., etc.


Estas quadras estão certamente deturpadas pela poeira do tempo, mas foi mais ou menos assim que as ouvimos, lá pelos meados do século passado, da boca do inconfundível Ti António «Triste» (não conhecemos alcunha que tão mal assente a uma pessoa!), ao desafio com alguém que a memória nos não revelou, numa tarde de domingo, e acompanhado pelo Ti Manuel Moreira, com a sua viola beiroa, que os garotos diziam, por graça, que tinha cordas de arame...

2 comentários:

Aquiles Pinto disse...

No original as cordas eram efectivamente metálicas (arame). Conseguiu descobrir mais alguma coisa sobre a viola beiroa do vosso conterrâneo ti Manuel Moreira? Disseram-me, em tempos, que era um seu familiar que a possuía.

Aquiles Pinto disse...

Em web.educom.pt/~asp/evo005.mp3,web.educom.pt/~asp/evo006.mp3 e web.educom.pt/~asp/evo008.mp3, encontra 3 ficheiros em que Manuel Moreira toca viola beiroa. Estas gravações foram recolhidas por E. Veiga de Oliveira, no início dos anos sessenta. Os títulos são, Parabéns e serenata aos noivas-voz de Catarina Chitas, Senhora da Póvoa e afinação da viola beiroa.